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O Mar d'Electra

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Recensão Crítica de Sara M. Barbosa

(Docente de Português e Literatura Portuguesa)

Rita Pea, O Mar d’Electra. Poesia erótica para amantes, Almada, Emporium Editora, 2021, 126 pp.

Ir à raiz das coisas

Electra, filha do rei Agamémnon e da rainha Clitemnestra, é um símbolo da força, da constância e de um particular amor filial e fraternal que a tragédia grega imortalizou. Não perdoa a morte do pai às mãos da mãe e do seu amante e mata-os com a ajuda do irmão, Orestes. É claro que muitas peripécias têm lugar nesta história e justificam, aos nossos olhos, tanto a atitude da mãe como a dos filhos. Porém, Electra é um marco na literatura grega e na história da humanidade: ela representa, acima de tudo, o momento em que o ser humano se liberta do poder dos deuses e segue o ditame das suas emoções. Digamos, actualizando para o nosso século XXI, que Electra nos revela o momento em que o ser humano recusa os constrangimentos e os preconceitos da sociedade e decide seguir os seus desejos, os seus sonhos, as suas emoções e ambições. É por isto que Electra espera o regresso do irmão e nunca o abandona, até que ele seja absolvido das mortes que perpetrou. A rapariga preserva, também, a sua virgindade até que possa casar com o homem por si escolhido, o melhor amigo do irmão: Pílades.

Desta indomável Electra, parece ter ficado, no livro de Rita Pea, a insubmissão, a libertação do jugo da sociedade e a resistência ao que os seus olhos vêem como injustiça. Faltava-lhe apenas mergulhar no Mar, à procura do reflexo da Lua (que é também o seu) e, sozinha no seu elemento, renascer purificada e inteira. Esta parte da história é a que encontramos em O Mar de Electra.

Levada pela mão e pela voz de Rita Pea, Electra vai à procura de si e do seu novo ‘eu’. Como é frequente acontecer nestas viagens, perde-se inicialmente na luxúria – e “Luxúria” é o título da primeira parte desta obra –, tentativa de esquecer o passado e ouvir o seu corpo e o seu espírito, ambos indomáveis. E escreve-se no poema III, logo no início, que “a rebentação do desejo/ vai e vem/ num compasso ardente e sincronizado” (p.15). Este desejo reclama, como o pessoano Álvaro de Campos, sentir tudo de todas as maneiras. Por isso, às vezes nos parece que o eu poético se entrega ao amor pela sua própria imagem, qual Narciso por si inebriado, mas noutras ocasiões é nos outros/as (ou no Outro/a) que é procurada a satisfação; no entanto, muitos são os poemas em que o sujeito se entrega ao amor da e pela poesia:


Renasceste
pura
no meu corpo
como a água que brota da nascente
ao ressoar da aurora.

Bebi-te
de olhos fechados
com a euforia a crepitar nos meus lábios.

Nesse instante
a poesia ecoou por toda a aldeia.

(“Poema XI”, p.23)


À luz da Lua, que se reflecte no Mar – Mar e Lua, eternos símbolos do feminino no seu estado mais puro e mais antigo – o sujeito lírico escreve, escreve para si e para outro(s) ou outra(s): “Os meus poemas nascem no teu corpo/ à luz da Lua” (“Poema XVI”, p.29). E quando, por fim, o corpo desejado se confunde com o corpo das palavras que escrevem o poema – inscrevendo-se, de alguma forma, nas correntes poéticas do feminino e do feminismo de uma Maria Teresa Horta, uma das leituras formativas de Rita Pea – é nesta altura que, diz o sujeito poético, citando o poema XXXIX, “anseio mergulhar/ em busca de mim mesma.” (p.51). E o mergulho leva-nos à segunda parte do livro – “Eco” –, uma viagem que pretende deixar para trás os ecos do passado.

O sujeito poético recusa-se a ficar preso ao seu passado, ainda que não possa eximir-se totalmente aos seus ecos. Esse é o trabalho dos poemas que compõem esta segunda secção, pois, como diz o “Poema LIII”, “Amores do passado/ não movem/ poemas.” (p.68). E se “o eco do mar” se manifesta nas palavras que compõem a poesia, trazendo “as chamas indomáveis do teu desejo” (“Poema LXIII, p.78), é também desejo do sujeito lírico viver e “sentir-te / (…) / em todas as madrugadas/ que a Primavera ainda desconhece” (“Poema LXXX”, p. 95). Mais uma vez, a natureza é convocada para afirmar a novidade, pois é ela que se renova depois de cada inverno; tal como o amor; tal como o poema.

“É este o momento./ O momento em que me despeço de mim mesma/ para renascer plena/ no teu corpo”, afirma-se no “Poema XCV” (p.110) que consiste na declaração de que o eu poético se despoja enfim daquilo que foi e que já não quer ser, rumo a uma nova existência, consciente do corpo que, como se verá, não é apenas uma forma de confronto com a alteridade mas também, e sobretudo, da relação dessa alteridade com o seu próprio corpo, real ou metaforizado na poesia. Por isso, o poema que encerra o segundo momento deste livro, o “Poema XCIX” (p.114), é um elogio à “Mulher-Liberdade”, uma mulher que transporta em si toda uma descrição romântica da natureza: ela é o caos, a agitação do vento e a força do mar, a heroína pronta a viver, tal como Electra, insubmissa, fiel apenas aos seus desejos, instintos e convicções.

A concluir, o centésimo texto é um poema à parte: trata-se de uma ode. Não a ode dos clássicos, tranquila e equilibrada como as de Pessoa /Ricardo Reis, mas antes uma ode enérgica e triunfal do feminismo. A “Ode à Gorda” é um manifesto revolucionário pela libertação do corpo da mulher, é uma recusa dos ditames e das normas que a sociedade continua a impor às mulheres. Um dos melhores textos que se têm escrito contra as amarras do sistema patriarcal que nos envolve e nos torna infelizes, reféns da aprovação e do olhar dos outros e das outras. A Gorda é a mulher, é a pessoa, que todos e todas gostaríamos de ser, se vivêssemos em liberdade plena: a Gorda passeia, a Gorda come e bebe com prazer, a Gorda ama e realiza-se sexual e espiritualmente, a Gorda sorri, conversa e fala com os vizinhos. Em suma, “a Gorda (…) é dona das suas banhas, dos seus desejos e do seu pensamento.” (p.120), a Gorda aceita-se no seu presente, vive e é feliz. E Rita Pea presta-lhe a mais bela e justa homenagem: escreve a sua história.

Este é um livro para ler devagar, para saborear o sumo das palavras, para sorrir de satisfação e, tal como as figuras que aqui se vão desenhando, sentir-se feliz, eroticamente feliz.

Sara M. Barbosa


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